quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Luiz Gama: 130 anos depois de sua morte, a luta contra o racismo continua!



O Brasil é um país sem memória, é o que muitos dizem. Anestesiados pelo futebol, o carnaval e o Big Brother, os escândalos de corrupção se sucedem um após o outro, sem que a maioria do povo sequer se lembre do nome dos envolvidos. O mesmo se pode dizer das nossas figuras “históricas”.
Mas acho que isso não é por acaso. Pelo contrário, tem a ver com o modo como foi sendo construído o Estado brasileiro ao longo dos anos. Desde o famoso “grito da independência”, o povo foi sistematicamente afastado do poder. A ele, só cabia obedecer e aplaudir os “heróis da pátria”, todos saídos da elite branca e escravocrata: Pedro I e Pedro II, Caxias, Bento Gonçalves, Tamandaré, todos eles perfeitos representantes dessa elite, sem nada que os identificasse com a massa do povo.
Pelo contrário, gente como Caxias foram canonizados como heróis justamente por seu papel em reprimir revoltas populares e matar pretos. Pessoas que se levantavam contra as injustiças da época, a infâmia da escravidão e ousavam se levantar contra os monstruosos privilégios dessa elite, além da perseguição que eram vítimas em vida, recebiam ainda outro castigo: o esquecimento, o desaparecimento dentro da história oficial, aonde só cabiam os “grandes”.
Luiz Gama, o negro escravo que chegou a advogado, é um dos maiores exemplos disso. Morreu há exatos 130 anos, no dia 24 de agosto de 1882, na miséria absoluta, depois de uma vida inteira dedicada à luta contra a escravidão. E lutou não suplicando para a boa vontade e compaixão dos senhores escravocratas, e sim apelando à dignidade do escravo e para o direito moral da revolta contra a degradação da escravidão. É dele a célebre frase “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”. Trazia o senso de revolta no seu sangue: nascido em Salvador, sua mãe, Luiza Mahin, era uma ex-escrava, que sobrevivia de vender doces e foi uma das líderes da célebre Revolta dos Malês, rebelião de escravos muçulmanos de Salvador. Sufocada a revolta, Luiza Mahin teve que fugir de Salvador,indo para o sul e depois desaparecendo de qualquer registro oficial, sem nunca ter reencontrado o filho. Este, algum tempo depois, foi vendido pelo próprio pai, para saldar uma dívida de jogo. Pelas próprias leis da época, isso também era ilegal, pois Luiz Gama nasceu livre, filho de uma escrava alforriada. Mas, como sempre, a lei não estava do lado dos mais fracos.
Após quase uma década de servidão para uma família remediada de São Paulo, Luiz Gama conseguiu sua liberdade. Passou a viver de pequenos serviços, enquanto estudava direito e passou a desenvolver sua militância a favor da abolição. Isso na década de 1840, quando essa causa estava longe de ser uma causa popular, contando com pouquíssimas adesões entre a gente “instruída” da época, mesmo entre os republicanos. Usando de seus conhecimentos em direito, aproveitava cada brecha na legislação escravista da época para defender o interesse de seus clientes, escravos que buscavam comprar sua liberdade. Por suas próprias contas, ele ajudou a libertar mais de 500 escravos através de processos legais.
Precisamente por conhecer tão bem as leis e o sistema judiciário da época, Luiz Gama não nutria nenhuma ilusão a respeito das instituições, e sabia que a verdadeira libertação só poderia se dar com a luta militante dos próprios escravos. Não se deixava seduzir pelas pregações hipócritas dos moralistas de então, que criticavam a violência dos escravos até mais do que a violência própria gerada pelos senhores de escravos. Grande polemista, Luiz Gama deixou, em centenas de discursos e cartas, um retrato vívido da condição degradante a que eram submetidos os seres humanos que se viam nessa condição, e concluía daí o direito moral à revolta: “Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados e escravizados, azorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta d todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome ... Quando, porém, por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do instinto revoltado, levantam-se como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus, são metidos no cárcere; e aí a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se”.
Ao longo da sua vida, recebeu várias ameaças de morte, vindas dos escravocratas que não conseguiam suportar a necessidade desse “preto” vir a ameaçar as suas “propriedades”. Mas isso não o impedia de continuar sua luta, ao mesmo tempo contra todo o sistema socioeconômico da escravidão e pela liberdade e dignidade individual da população escravizada. Já no final da sua vida, ao lado de Antonio Bento, funda o clube abolicionista, precursor do grupo Caifazes, um movimento que se poderia dizer partidário do método da ação direta e da desobediência civil: Através de uma vasta rede de contatos, ele se infiltravam nas fazendas e convenciam os escravos a fugir, alojando-os depois em igrejas ou em casas de simpatizantes. Depois, eles seguiam para Santos, ajudados por ferroviários simpatizantes da causa, até serem alojados no quilombo de Jabaquara, onde podiam seguir para outro local onde pudessem se estabelecer definitivamente.
O seu inspirador e patrono era Luiz Gama, que ainda na velhice não se assustava diante do uso de métodos “radicais” para combater a escravidão e toda a instituição da qual era a base. No entanto, não pôde viver para ver a realização de seu maior objetivo: morreu na sua casa, localizada no bairro do Brás, aos 58 anos, deixando para seus filhos nenhum centavo em bens materiais, mas uma história de lutas e sacrifícios em beneficio de uma causa. Seis anos depois, a instituição da escravidão, moribunda e já não mais interessante do ponto de vista econômico, foi formalmente abolida, não por um ato de bondade de outra figura oficial, a princesa Isabel, mas sim pela luta dos próprios escravos e de seus aliados entre a população. Quando a História for escrita do jeito que deve ser, serão figuras como Luiz Gama que serão lembrados, e não os hipócritas da conciliação e da sociedade “oficial”.
A luta continua!
Fonte: Site LSR

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