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Brasil é um país sem memória, é o que muitos dizem. Anestesiados pelo
futebol, o carnaval e o Big Brother, os escândalos de corrupção se
sucedem um após o outro, sem que a maioria do povo sequer se lembre do
nome dos envolvidos. O mesmo se pode dizer das nossas figuras
“históricas”.
Mas acho que isso não é por acaso. Pelo contrário, tem a ver com o
modo como foi sendo construído o Estado brasileiro ao longo dos anos.
Desde o famoso “grito da independência”, o povo foi sistematicamente
afastado do poder. A ele, só cabia obedecer e aplaudir os “heróis da
pátria”, todos saídos da elite branca e escravocrata: Pedro I e Pedro
II, Caxias, Bento Gonçalves, Tamandaré, todos eles perfeitos
representantes dessa elite, sem nada que os identificasse com a massa do
povo.
Pelo contrário, gente como Caxias foram canonizados como heróis
justamente por seu papel em reprimir revoltas populares e matar pretos.
Pessoas que se levantavam contra as injustiças da época, a infâmia da
escravidão e ousavam se levantar contra os monstruosos privilégios dessa
elite, além da perseguição que eram vítimas em vida, recebiam ainda
outro castigo: o esquecimento, o desaparecimento dentro da história
oficial, aonde só cabiam os “grandes”.
Luiz Gama, o negro escravo que chegou a advogado, é um dos maiores
exemplos disso. Morreu há exatos 130 anos, no dia 24 de agosto de 1882,
na miséria absoluta, depois de uma vida inteira dedicada à luta contra a
escravidão. E lutou não suplicando para a boa vontade e compaixão dos
senhores escravocratas, e sim apelando à dignidade do escravo e para o
direito moral da revolta contra a degradação da escravidão. É dele a
célebre frase “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância
for, mata sempre em legítima defesa”. Trazia o senso de revolta no seu
sangue: nascido em Salvador, sua mãe, Luiza Mahin, era uma ex-escrava,
que sobrevivia de vender doces e foi uma das líderes da célebre Revolta
dos Malês, rebelião de escravos muçulmanos de Salvador. Sufocada a
revolta, Luiza Mahin teve que fugir de Salvador,indo para o sul e depois
desaparecendo de qualquer registro oficial, sem nunca ter reencontrado o
filho. Este, algum tempo depois, foi vendido pelo próprio pai, para
saldar uma dívida de jogo. Pelas próprias leis da época, isso também era
ilegal, pois Luiz Gama nasceu livre, filho de uma escrava alforriada.
Mas, como sempre, a lei não estava do lado dos mais fracos.
Após quase uma década de servidão para uma família remediada de São
Paulo, Luiz Gama conseguiu sua liberdade. Passou a viver de pequenos
serviços, enquanto estudava direito e passou a desenvolver sua
militância a favor da abolição. Isso na década de 1840, quando essa
causa estava longe de ser uma causa popular, contando com pouquíssimas
adesões entre a gente “instruída” da época, mesmo entre os republicanos.
Usando de seus conhecimentos em direito, aproveitava cada brecha na
legislação escravista da época para defender o interesse de seus
clientes, escravos que buscavam comprar sua liberdade. Por suas próprias
contas, ele ajudou a libertar mais de 500 escravos através de processos
legais.
Precisamente por conhecer tão bem as leis e o sistema judiciário da
época, Luiz Gama não nutria nenhuma ilusão a respeito das instituições, e
sabia que a verdadeira libertação só poderia se dar com a luta
militante dos próprios escravos. Não se deixava seduzir pelas pregações
hipócritas dos moralistas de então, que criticavam a violência dos
escravos até mais do que a violência própria gerada pelos senhores de
escravos. Grande polemista, Luiz Gama deixou, em centenas de discursos e
cartas, um retrato vívido da condição degradante a que eram submetidos
os seres humanos que se viam nessa condição, e concluía daí o direito
moral à revolta: “Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como
anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados e escravizados,
azorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada
liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem
pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho,
transformados em máquinas, condenados à luta d todas as horas e de todos
os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de
ladrões impudicos, de salteadores sem nome ... Quando, porém, por uma
força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do
instinto revoltado, levantam-se como a razão, e matam o senhor, como
Lusbel mataria Deus, são metidos no cárcere; e aí a virtude exaspera-se,
a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o
patriotismo arma-se”.
Ao longo da sua vida, recebeu várias ameaças de morte, vindas dos
escravocratas que não conseguiam suportar a necessidade desse “preto”
vir a ameaçar as suas “propriedades”. Mas isso não o impedia de
continuar sua luta, ao mesmo tempo contra todo o sistema socioeconômico
da escravidão e pela liberdade e dignidade individual da população
escravizada. Já no final da sua vida, ao lado de Antonio Bento, funda o
clube abolicionista, precursor do grupo Caifazes, um movimento que se
poderia dizer partidário do método da ação direta e da desobediência
civil: Através de uma vasta rede de contatos, ele se infiltravam nas
fazendas e convenciam os escravos a fugir, alojando-os depois em igrejas
ou em casas de simpatizantes. Depois, eles seguiam para Santos,
ajudados por ferroviários simpatizantes da causa, até serem alojados no
quilombo de Jabaquara, onde podiam seguir para outro local onde pudessem
se estabelecer definitivamente.
O seu inspirador e patrono era Luiz Gama, que ainda na velhice não se
assustava diante do uso de métodos “radicais” para combater a
escravidão e toda a instituição da qual era a base. No entanto, não pôde
viver para ver a realização de seu maior objetivo: morreu na sua casa,
localizada no bairro do Brás, aos 58 anos, deixando para seus filhos
nenhum centavo em bens materiais, mas uma história de lutas e
sacrifícios em beneficio de uma causa. Seis anos depois, a instituição
da escravidão, moribunda e já não mais interessante do ponto de vista
econômico, foi formalmente abolida, não por um ato de bondade de outra
figura oficial, a princesa Isabel, mas sim pela luta dos próprios
escravos e de seus aliados entre a população. Quando a História for
escrita do jeito que deve ser, serão figuras como Luiz Gama que serão
lembrados, e não os hipócritas da conciliação e da sociedade “oficial”.
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